A lotaria dos miseráveis
Ainda tinha nas mãos o pequeno rádio de pilhas. Apagara-o, como era seu hábito, para poupar as pilhas, depois de ouvir os pregões da lotaria do Natal.
Mas queria crer que tinha ali, na caixa metálica que se escondia no canto do quarto, num buraco do chão de terra batida, uma fracção premiada com o primeiro prémio. Como era costume todos os natais, o João da venda dera-lhe o bilhete duma fracção da lotaria, em troca de meia dúzia de biscates. Manuel Terêncio fazia essas coisas com prazer, eram parte da sua época natalícia e o João, seu amigo de infância, de vez em quando dava-lhe umas roupas usadas, umas garrafas de vinho ou de aguardente, que o ajudavam a prevenir as gripes de inverno, e, de vez em quando um prato de sopa ou uma refeição, resgatada das sobras da clientela.
Nesse ano Manuel tinha-se entretido a arranjar a fechadura da porta principal da velha taberna. Desmontara-a e limpara-a com cuidado. Depois de oleada e afinada, ficara como nova. E também tinha arranjado parte da canalização da casa de banho dos clientes, servida por uma sanita e um lavatório mínimo e já muito escurecido pelos anos sucessivos de uso. O preço do bilhete não chegaria, de certo, para pagar esses trabalhos se executados por mãos profissionais. Por isso, estava fora de questão uma possível partilha do prémio. Havia ainda a hipótese do João da venda ter ficado com o resto da cautela, ficando assim mais rico do que quem tinha só uma fracção.
Manuel sabia que a sua fracção iria receber um prémio elevado. Nesse ano a lotaria dava um prémio recorde, mais de três milhões de contos. A Santa Casa da Misericórdia tinha feito um protocolo com a lotaria espanhola, o que tinha engordado os prémios.
Mas o João teria ficado com alguns dos bilhetes premiados? Já tinha passado uma hora da divulgação dos resultados e não se ouvira um ai. A venda do João ficava na mesma rua da velha adega onde Manuel tinha a sua habitação. Era uma divisão de pouco mais de 15 metros quadrados, de construção rústica e pejada de velharias que o velho maltrapilho recolhia pelos cantos do mundo que ele percorria a pé à cata de coisas recuperáveis. Era uma mente recolectora, compulsiva e misantrópica. Vivia naquele tugúrio herdado dum tio que teve uma vida semelhante, de solteirão e excêntrico, amante da solidão e avesso a banhos e a hábitos civilizados, que ele considerava como sinais de degradação moral. Aquelas gentes, outrora trabalhadoras e sadiamente campestres viviam agora os luxos da vida dita moderna que, da capital, irrompiam em vagas cada vez mais tumultuosas, na pacatez da aldeia e levavam as pessoas a assumir hábitos estranhos à pureza original.
Até o padre se dava a inovações. Projectava filmes na igreja e deixava a canalha cantar na missa com acompanhamento à espanhola. O som das violas parecia um insulto comparável à invenção caprichosa dos italianos que impuseram a missa em Português. O latim tinha outra atmosfera nas missas de antigamente. As pessoas viviam mais o culto, pelo menos andavam na linha e eram submissas. Sob o peso arredondado das missas daqueles tempos, cada um sabia que havia lugar para todos debaixo do sol.
E se o João não ganhou nada? A venda estava apinhada de gente quando a televisão transmitiu o sorteio da lotaria. Manuel teve mesmo que colar o rádio à orelha para poder ouvir com precisão os números da sorte. O marulhar das vozes curiosas e alegres com o feriado de algumas horas, uma sadia ruptura dos hábitos de trabalho da aldeia, abafava o som rouco da televisão. Depois do sorteio, o silêncio. O ajuntamento debandou de volta à normalidade da vida do campo. E a partir daí só se ouvia o som mamóreo dos jogadores de dominó que, como era hábito, batiam com as peças do jogo no tampo das mesas. De vez em quando baralhavam-nas com um barulho de caos e expectativa.
Seria possível que o João, sempre atento aos ganhos monetários, que não perdoava às velhas beatas os 50 escudos de taxa por lhes descontar o cheque da reforma, teria deixado escapar-se-lhe da memória o número do bilhete que lhe tinha oferecido? E podia dar-se o caso de não ter mais bilhetes daquela cautela? Na aldeia só se vendiam umas 3 cautelas completas. Uma era comprada pelo padre Libório que há mais de quinze anos angariava dinheiro para restaurar a igreja. Outra ia direitinha para o senhor doutor sacramento que queria acabar os seus dias longe daquela rotina de médico gordo de província. E por vezes a malta dos copos juntava-se para comprar uma cautela. Sendo assim, o João ficava com as sobras doutros estabelecimentos da zona de Coimbra e chegava à véspera do sorteio com alguns bilhetes desgarrados com os quais, depois de satisfazer a procura da sua clientela, tentava a sorte. Teria sido dessa carteira de refugo que tinha saído o bilhete que lhe tinha calhado em sorte? Manuel sorria ao antever esta possibilidade. E talvez o João não tivesse prestado atenção ao número. Ou tivesse descartado um número com que antipatizava. Quem sabe...
Aquele dinheiro vindo do céu era uma confirmação da justeza da sua vida. Uma vida de quase reclusão. Sem amores e sem dissabores. Sempre fugira a possíveis namoradas. Havia qualquer coisa nas mulheres que lhe trazia negrume à alma. Embora as velhas mais arrebitadas se lembrassem com alguma ternura da sua figura esbelta de jovem ensimesmado. Mesmo sem o saber, tinha acendido paixões e alimentado a imaginação adolescente de muitas virgens sonhadoras com as florações da carne. Mas as mulheres, na sua visão muito geométrica do mundo, muito geocêntrica e concertada, não pareciam ter uma relação muito sadia com o dinheiro. Parecia que não se satisfaziam com a sua posse. E eram uma porta aberta para os filhos, bocas sempre abertas e esfomeadas. Não, essa vida de chefe de família nunca o seduzira. Ser pai para ele ela algo que lhe parecia demasiado sombrio, demasiado violento. Não gostava de crianças, mas era impensável dar-lhes porrada sempre que fosse necessário. Antes deixá-las passar ao largo.
O que nem sempre era fácil. Davam-lhe alcunhas. Apedrejavam-no na horta, que ficava no caminho para a escola, maldita sina. Chamavam-lhe Manuel das botas, por causa dos botins pretos que usava sempre, de inverno ou de verão. E, desde há uns tempos, havia outra alcunha que lhe era mesmo insuportável, cabra alta. "Olha o cabra alta!" Era obrigado a ouvir quando a canalha o avistava ao longe. E ele sabia que essa alcunha tinha agradado na aldeia. Melhor seria ser conhecido por Manuel das botas, nisso não havia insulto. E na aldeia as alcunhas tinham mais propriedade que os nomes próprios.
O Pedro Trinta era um exemplo disso mesmo, não era Pedro de Baptismo, o nome vinha dum avô que tinha comprado o são Pedro que ainda adornava, velho e cheio de fungos, um dos nichos mais recônditos da igreja. Os mais velhos acharam-lhe parecenças, pela feiura disforme, com esse seu avô. E trinta, era alcunha de família. Uma sua antepassada já meio sumida nas brumas da memória da história dos esquecíveis, tinha sido abordada por trinta soldados franceses em tempo de invasão. Assim nascera a família dos trinta, por afinidade, pois, segundo parece, a infortunada senhora tinha recolhido a um convento. Onde se finou sem mais notícia.
Estava fora de questão dar a conhecer a sua sorte ao resto da aldeia.
Receber o prémio seria uma empresa bem complicada. Havia uma série de procedimentos que talvez despertasse a curiosidade dos vizinhos, tão ávidos de novidade dada a placidez da vida ali naquele recanto de Portugal.
O bilhete de identidade estava caducado. Não tinha número de contribuinte. Nunca tratara dos papéis para a reforma para não atrair sobre si a atenção do Estado. Achava que alguém poderia lembrar-se de o obrigar a conformar-se com o viver já mais domesticado das outras gentes. E se calhar havia alguns impostos que lhe poderiam ser extorquidos.
E não tinha, como é óbvio, conta bancária.
Havia, no entanto, um pecúlio de monta, bem enterrado no tal buraco onde jazia o bilhete da taluda. Eram mais de cinco mil contos em notas de todos os feitios, muito amarrotadas e com cheiro a mofo. Mas o cheiro a dinheiro, uma mistura de incenso e camomila, estava bem impregnado nas notas. O único problema era a troca das notas quando os políticos de Lisboa resolviam retirá-las de circulação. Isso era sempre uma carga de trabalhos. Tinha que enrolar as notas em perigo de nadificação, em sacos de plástico e largar-se à aventura de ir suficientemente longe para não dar a conhecer os vestígios do seu pecúlio.
Agora a empresa seria sobre-humana. Como conseguiria trazer para ali mais de trezentos mil contos? E aquele chão seria suficiente para guardar tanto dinheiro? E como trazer tantas notas para ali? E se o João soubesse do prémio e se tivesse calado? Seria capaz de tentar alguma coisa fora do normal para reaver o bilhete? Talvez procurasse trocá-lo por outro sem prémio.
Sair estava, por enquanto, fora de questão. Mas o diabo é que a viúva do Zé Bonito lhe tinha prometido o jantar em troca do arranjo do ferro de engomar que deixara de aquecer. Se ele não aparecesse talvez a velha alcoviteira viesse ali assuntar. Era muito inconveniente essa possibilidade. E na verdade ninguém conhecia o paradeiro da caixa de folha enterrada bem ali ao canto, debaixo dum monte de tralha, sabiamente disposto de forma displicente. Mas tinha que passar em frente da venda do João. Este estaria, como sempre, debruçado sobre o balcão olhando para as pedras negras da rua. Era um hábito enraizado naquela mente ruminadora. Não lhe escapava vivalma. E essa sua atenção servia de chamariz. E grão a grão...
Ir pelo outro lado da rua era impensável, pois a casa do João da venda ficava mesmo ao fundo da rua, a taberba estava num extremo, a casa no outro. Essa rua era o centro da atenção da família da venda. Oito pares de olhos sempre à coca. Passar pelo outro lado era despertar a atenção vigilante e solícita desses servidores do povo. O que fazer?
Quando passou pela porta da venda reparou que lá dentro estava tudo apagado. A penumbra era muito densa. O João não tinha a televisão acesa como de costume. E não trovejou "óh Manel!!!", como era seu hábito desde quando brincavam juntos na meninice já há muito transcorrida.
Aquilo era estranho. O João adorava o concurso que dava ao fim da tarde. As suas gargalhadas desdentadas ouviam-se à distância de muitos passos. Será que ali havia gato?
Seria aquilo sintoma de congeminação?
Nas trazeiras da venda estava o espaço vazio do velho táxi com que João atendia às necessidades da aldeia em termos de transporte. Saira com o carro... Porquê?
Ao chegar a casa da viúva ficou na posse de todos os detalhes. As velhas beatas do costume, enroladas nos seus xailes de franjas maltratadas, desfiavam a ladainha da infelicidade da pobre, levada à pressa pelo senhor João, com os olhos revirados e a espumar pela boca. Tinha-lhe dado uma solipampa quando colhia hortelã para a canja. E que bem que cheirava a canja apressadamente deixada ao lume. Pena que fique por provar, mas há urgências maiores que as exigências do estômago dum velho descompassado com a vida dos demais.
Deixou-se ficar na orla das conversas e retirou-se furtivamente. Era tempo de agir.
Podia agarrar no bilhete premiado e dar o salto até à sede do concelho. A bicileta ferrugenta conseguiria dar conta do recado numas duas horas de pedalada calma, pois o caminho era sempre a direito. E se a noite caísse no caminho, podia recolher-se nalgum abrigo dos caçadores, havia muitos dispostos ao longo do caminho, nas margens do rio. No dia seguinte podia inventar uma história credível. Tinha sobrinhos em Lisboa e podia ir dar notícia ao João dalgum infortúnio familiar. Bastava gastar algum dinheiro nos correios. Um telefonema era o suficiente. Escondia a bicicleta debaixo de alguma moita, como fazia muitas vezes. E apanhava o comboio para o Porto. Aí tinha um primo frade que podia dar-lhe guarida por uns dias. O tempo suficiente para descobrir o que fazer quanto ao prémio da lotaria. Inventaria uma consulta médica. O primo não estranharia porque não conhece a sua saúde de ferro e a sua aversão aos médicos, seres meio enfeminados e ganaciosos, sempre prontos a trocar por notas sonantes umas apalpadelas aqui e ali, por entre resmungos sobre a falta de higiene do paciente.
Meteu-se em casa. Fechou a única porta à chave e meteu a tranca na porta. Como a adega não tinha janelas, estava seguro da sua inteira privacidade.
Retirou o ferro-velho que tapava o secreto esconderijo da sua fortuna. Cavou com uma colher de pedreiro. Depressa encontrou a pedra que servia de tampa ao buraco. Retirou-a e ficou sem pinga de sangue! A terra retirada precipitou-se num susto para dentro do buraco, ao mesmo tempo que uma baforada de ar frio bateu na cara do velho avarento. Debaixo do chão da sua adega abria-se uma caverna, maior do que a adega, que dava para a rua que passava na lateral do pardieiro.
Os ratos tinham escavado galerias imensas no subsolo.
E a água das chuvas recentes, torrenciais e diluvianas, tinha formado uma ribeira subterrânea que abriu catacumbas incógnitas por baixo das casas.
Desesperado, Manuel precipitou-se pelo buraco, com uma lanterna a pilhas que usava quando ia regar à noite com a água da câmara municipal. E um estrondo lamacento abanou as paredes de pedra das casas circundantes.
Passadas duas semanas, e depois de muita perplexidade das gentes da aldeia, o tal primo frade, quase da mesma idade e com ar bonacheirão, entrou com a guarda dentro da adega do velho eremita. O cenário era Dantesco. O movimento de terras não tinha causado grandes danos, mas a forma como o velho vivia era indescritível. Rodeado de lixo, apinhado no chão e pendurado no tecto, estava um catre com alguns cobertores completamente maltrapilhos. As pulgas precipitaram-se sobre as canelas sumarentas daquelas criaturas pouco curtidas pelos rigores da vida do velho rabugento. Uma mudança saborosa na rotina daquele local insalubre.
Quando os olhos dos aventureiros exploradores da miséria irracional que teve ali um cenário de mais de sessenta anos, se habituaram à osbcuridade bafienta, descobriram, sem grande surpresa, o que tinha acontecido. Um grande buraco cheio de ferro-velho abria-se num dos cantos do pardieiro. Um dos guardas apontou uma lanterna lá para dentro e, no meio dos destroços, via-se uma mão meio comida pelos ratos. O defecho daquela vida tinha ali um cenário claro e sem qualquer implicação criminal. Bastava chamar o delegado de saúde e fazer-lhe o enterro.
O frade, não conseguindo verter uma lágrima, sentiu pena daquele infeliz. E viu uma caixa de folha, esverdeada e ferrugenta, a meio caminho entre a boca do buraco e o cadáver do seu primo. Com uma sachola retirou a caixa do buraco e abriu-a. Lá dentro estavam alguns santinhos com dizeres piedosos, um rosário com contas pretas, muito gastas, uma caixa de plástico com meia-dúzia de dentes amarelos e alguns bilhetes de lotaria. O mais antigo tinha 12 anos. "Pobre diabo!" Ao pensar isto fechou a caixa e atirou-a de novo para o buraco. Ao bater na terra fofa sumiu-se, pois o solo por baixo da confusão ainda tinha muitos espaços sem preenchimento.
E o velho manuel das botas foi a enterrar numa quinta-feira chuvosa de inverno. A aldeia em peso marcou presença. Como era costume.
Ninguém encontrou o dinheiro, que estava guardado numa pequena barrica por baixo da tal caixa que folha que, como é natural, também nunca mais foi vista.