contos sem conta

Tudo cabe num conto. Tudo se conta. Menos o que não faz de conta. Porque a vida só contável é que se torna credível. Ganha vida. A vida sem vida não se conta, desconta-se. E o acto de descontar muitas vezes é um fazer de conta. Por vezes faço de conta que não sou eu. E quando sou eu não conto. E quando conto não sei o que fazer do eu. Há tanto infinito para abraçar...

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Eu sou, eu quero ser, o que não se resume a um eu. Quero ser o que se me der. Se o mar vier até mim, quero ser o mar. Se o vento me vier animar por dentro, quero ser o vento. Se o verde das serras me presentear com os seus aromas de rosmaninho e de sarça ardente, quero ser cada uma das serras... E quero conseguir deixar sempre o ego pendurado no armário das coisas inúteis. Serve para quê? Para separar, para colocar pontos finais, margens sem nexo, na vida que, no seu âmago, não tem limites.

domingo, fevereiro 19, 2006

Jacinto, a flor do mal

"No início do Outono, vieram do Norte uns homens exultantes, tinham derrubado o último bastião de resistência do governo central.
Na nossa capital, Citânia, as pessoas vieram à rua celebrar o dia histórico.
Foi-nos apresentado o nosso novo líder. Era magro, de estatura mediana, com olhos famélicos. Dizia-se que amava os livros e era temido pelas mulheres. Corriam rumores de chacinas e vinganças.
Esse homem outrora tinha trabalhado na biblioteca nacional que servia também como arquivo central. Aí instalou a sede do seu governo.
A tarde do primeiro dia da nova era foi coroada pela exibição das cabeças de vinte antigos funcionários da biblioteca nacional. Foram penduradas em lanças, como as que são usadas pela cavalaria nas marchas militares. Constou nos sussurros dos becos que essas pessoas tinham ousado ver-se promovidas, passando à frente do agora grande líder. Pagaram essa ousadia com a vida e com horas de fel, nas câmaras de tortura acabadas de instalar nas caves do edifício.
À noite foi convocada uma manifestação de regozijo pela vida do nosso grande líder, Irineu Jacinto. Para vitoriar quem foi coroado com um nome de flor, os guardas negros da rectidão distribuíram flores brancas à multidão. E um livro da Sua autoria, pelos menos ostentava o seu nome na capa. Era um livro de ficção. Contava a história dum palhaço triste que tinha conseguido transformar-se em domador de leões. E no fim da história o domador de leões salva o circo da falência ao despedir os palhaços.
O povo festejou com gritos de ordem que arranhavam as gargantas. O silêncio seria um punhal, ou daria acesso aos confins da dor infinita. À entrada da sede do governo, mesmo por baixo da varanda de onde o líder discursou, estavam montadas vinte peças de artilharia ligeira, viradas para a multidão. Dir-se-ia que os canos das armas eram de prata, tal o fulgor com que reflectiam a luz dos holofotes.
No frio da noite ecoaram palavras como "fraternidade", "autoridade", "felicidade". Tinha chegado a era da plenitude. Por fim a sociedade seria capaz de dar a cada indivíduo tudo o que é humanamente necessário para viver. Trabalho. Fidelidade ao grande pai, o Estado. Cada um receberia instruções claras sobre o que fazer. Onde trabalhar. Com quem casar. Quantos filhos teria que ter. Quando morrer. Tudo em nome da nova ordem. E o grande líder zelaria para que nada faltasse aos seus queridos irmãos, dando a cada um instruções e determinações.
Por toda a cidade, e enquanto se ouviam por todo o lado as palavras de chumbo do nosso grande líder, soldados de rosto austero disparavam sobre todos os vultos que cruzavam as ruas. Entravam nas casas onde se visse luz. Metralhavam quem ousasse não estar na manifestação de júbilo. Velhos acamados. Bebés recém-nascidos. Mulheres. Vermes que se tinham posto à margem da redenção final.
Durante dias o fumo negro pairava sobre a cidade, espalhava-se pelos campos, invadia os pulmões com um aroma adocicado. Tudo o que tivesse a marca da ilusão deveria ser purificado pelas chamas. Ao fim de alguns dias a figura curvada e sombria de Irineu Jacinto tinha-se tornado demasiado grande para ser contada entre os mortais. No centro da capital, onde se erguia uma igreja milenar, foi construído um templo em honra do pai da nação. Milhares de operários levantaram em menos de um mês uma estrutura em aço. No seu centro um retrato de Sua Sumidade acenava aos seus adoradores, curvados num louvor mudo.
Nesse ano a Primavera passou longe dos nossos campos. A neve cinzenta cobriu as planícies até quase ao despontar do Verão. Em honra do líder todos tinham que ter um vaso de flores nas sacadas. Muita gente morreu, derrotada pela geada inclemente.
Hoje olho-me ao espelho e vejo, no fantasma que me olha fixamente, as feições do nosso líder. Todas as pessoas se parecem cada vez mais com ele. O nariz de matemático, a fronte decidida e o queixo de quem sabe tudo. Queria vestir o meu melhor fato, mas no manual de bem parecer é-nos aconselhada a sobriedade e a humildade no trajar. Vejo se tenho dinheiro suficiente para comprar uma rosa branca para pôr na lapela. A corola tem que ter exactamente cinco centímetros de diâmetro, em honra das cinco virtudes. Lá fora um carro da polícia dos costumes espera-me. Chegou a minha vez. Tenho mais sete centímetros de estatura do que o nosso Salvador. Tal como os milhares que já foram confrontados com a irrefutável verdade da sua não conformidade, também eu tenho que comparecer perante os sábios juízes. Agora já não cortam as pernas aos que não podem pertencer à nova ordem. Isso estava a aumentar de forma incontrolável os dependentes. Sei que hoje já não verei o despontar da primeira estrela. A esta hora o meu nome já estará a ser rasurado dos registos do Estado. Como me chamo Manuel Rosa, vou poder cumprir o meu dever sem dor. Um dos anciãos do futuro dar-me-á a beber um líquido com o aroma desconcertante das amêndoas amargas."