contos sem conta

Tudo cabe num conto. Tudo se conta. Menos o que não faz de conta. Porque a vida só contável é que se torna credível. Ganha vida. A vida sem vida não se conta, desconta-se. E o acto de descontar muitas vezes é um fazer de conta. Por vezes faço de conta que não sou eu. E quando sou eu não conto. E quando conto não sei o que fazer do eu. Há tanto infinito para abraçar...

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Eu sou, eu quero ser, o que não se resume a um eu. Quero ser o que se me der. Se o mar vier até mim, quero ser o mar. Se o vento me vier animar por dentro, quero ser o vento. Se o verde das serras me presentear com os seus aromas de rosmaninho e de sarça ardente, quero ser cada uma das serras... E quero conseguir deixar sempre o ego pendurado no armário das coisas inúteis. Serve para quê? Para separar, para colocar pontos finais, margens sem nexo, na vida que, no seu âmago, não tem limites.

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

Os três castelos

Na terra das vinhas rubras, onde os reis do Norte fundearam os seus barcos alados havia uma região dominada por três montes, cada um deles com um castelo. Tratava-se da habitação dos servidores da deusa Armísia que protege os filhos da terra e lhes prepara a derradeira viagem rumo às estrelas.
Os castelos tinham as suas portas principais viradas para o mesmo lado, para o vale da Primavera Eterna, em cujo centro se acreditava que a deusa vinha, em dias que só alguns sacerdotes sabiam, colher gotas de orvalho para dar como alimento às rosas sem cor.
Os viajantes contavam histórias de virgens degoladas e tigres alados, mas era-lhes dado pouco crédito, pois aos estrangeiros estava vedado sequer pisar esse solo sagrado e àqueles que lá viviam só lhes era permitido sair do perímetro guardado pelos castelos se acompanhados por uma escolta de guardas do silêncio. Sem língua, falavam através do gume das espadas, quando não do frescor rubro dos punhais.
Cada castelo era morada de três castas superiores. E em cada um deles falava-se uma das línguas sagradas que o deus Sirvha ensinara aos primeiros homens que cultivaram a vinha. No castelo do Norte, chamado Ür Muhnir, a casa de Verão, dominava a casta dos adoradores do fogo. Cabia-lhes acender a pira sagrada nas noites de Lua cheia ou de Cahziham, a deusa dos vulcões. Eram cento e vinte os habitantes da Morada Secreta, a torre que se erguia no centro do castelo. Eram eles que comandavam as tropas do Norte no mês da Guerra e o seu nome fazia tremer até os habitantes da longínqua Estrídia.
No castelo do Sul os Servos da Lua, ou Arth Armísia, filha de Armísia, conhecidos como os guerreiros das serpentes, eram os senhores da vida e da morte. Cinquenta e sete deles comandavam as hostes da casa de Inverno, Ür Mahor, no mês da Guerra.
No outro castelo, Ür Méchor, casa do Tempo, habitavam as três castas dos cultores da sabedoria: os Etreus, estudiosos dos fenómenos celestes; os Méqueus, estudiosos dos caprichos da Lua e os Zaihireus, os que estudam as subtilezas da via do Sim. Eram estes últimos que se sacrificavam, setenta de entre eles, à frente do exército sem nome, no mês da Guerra. A sua fama de guerreiros implacáveis impediu durante vinte e quatro séculos que as terras de Armísia conhecessem qualquer invasor.
Mas no décimo primeiro ciclo da era de Ahsh, o Profeta, senhor dos três castelos depois da última guerra sagrada, os habitantes da Longría invadiram o vale da Primavera Eterna e passaram as suas espadas envenenadas por todos os viventes. Depois, cobriram as heras sagradas de palha e deitaram-lhes fogo. As rosas sem cor ficaram sem o orvalho que lhes dava vida e Artémis, junto com a sua tribo divina, deixou a terra para não mais voltar.
Hoje, passado mais de sete séculos desse tempo de horror, é difícil reconstituir os infaustos acontecimentos, pois os servos dos três castelos nada deixaram inscrito nas rochas sobre o que se passou depois da investidura do profeta e todos os documentos inscritos em superfícies perecíveis se terão perdido.
O que se sabe resulta dos relatos de dois mercadores que, visto que os guardas do silêncio tinham abandonado as torres de vigia da fronteira, ousaram dirigir-se ao castelo do Norte. Mais ninguém, mesmo depois do regresso dos dois afortunados, empreendeu tal viagem, pois aquelas terras continuavam a infundir um terror intenso por todas as regiões circunvizinhas…
Os dois mercadores deixaram o seguinte relato que, dadas as vicissitudes do tempo, nos chegou truncado. Algumas partes são difíceis de traduzir, pelo que não ousarei fazê-lo dadas as minhas limitações no que respeita à língua dos antigos Neporinos, hoje morta.
Diz assim o relato:
“Nós, Aghor e Eghor, filhos de Jehor, entrámos na região do culto da deusa do Além.
Levávamos mel e peles de leopardo, bem como adagas com punhos de marfim originárias de uma parte longínqua de África, cuja raridade as torna altamente valiosas. Sabíamos o quanto aquele povo amava a guerra, pelo que as nossas mercadorias seriam com certeza apreciadas. Mas, como vereis, estávamos longe de supor com verdade…
<…> Junto aos portões principais do castelo ardia uma fogueira, dentro duma pira circular que vinte homens não conseguiam abraçar <…>.
À cabeça traziam cestos feitos de junco entrançado duma maneira que nunca víramos. E entoavam cânticos que as suas vozes púberes tornavam ainda mais melodiosos. Na fronte tinham vestígios de uma tatuagem de uma serpente que dava a impressão de ter sido apagada com um instrumento de metal incandescente. O nosso guia disse-nos que se tratava de antigas mães dos guardas do silêncio, recém-libertadas das suas obrigações perante o Templo Maior, por ordem daquele a que chamam o Profeta, filho de Ahsh de quem herdou o nome. Os cestos vinham cheios de mãos humanas, as mãos dos que se recusaram a largar a adaga, a espada dos cavaleiros ou o arco dos arqueiros sem piedade. Não pudemos saber quantos eram esses infelizes, somente que eles iriam viver a expensas da Casa de Ishjohar que recebera ordens para que nada lhes faltasse.
Para entrarmos no castelo tivemos que nos descalçar e que envergar uma túnica branca. Todos os nossos pertences <…> Em troca recebemos a garantia de que tudo nos seria devolvido.
<…>
Só depois de duas horas e de algumas peripécias do género da anterior é que pudemos observar parte das muralhas. Tal como no exterior, elaboradíssimas pinturas cobriam as pedras. Nelas se viam cenas da vida quotidiana de um povo que mais parecia divino do que humano. E essas pinturas ainda não estavam acabadas, em muitos locais um formigueiro de homens de branco dava retoques nas figuras ainda só esboçadas, enquanto outros carregavam todo o tipo de coisas que serviam para esse fim. Havia uma alegria estampada em todos os rostos, não só dos operários, mas das pessoas com que nos cruzávamos, que a pouco e pouco nos foi contagiando, ao ponto de amiúdas vezes <…>.
Fomos apresentados a um dos sábios. Ele aproximou-se e dirigiu-se-nos na nossa língua. Falava de forma muito mais perceptível do que o nosso guia e parecia conhecer bem todos os costumes da nossa terra. Ficámos deveras espantados quando nos disse que nunca tinha transposto as muralhas do castelo. Tinha aprendido tudo isso sobre as nossas maneiras de proceder na Academia das Artes Supremas onde os mais sábios de entre os sábios inventavam continuamente mundos, histórias, catástrofes naturais, toda a sorte de coisas que moldam as civilizações e tornam única a alma dos povos. E ao estudarem ao pormenor esses mundos julgavam estar a entrar no conhecimento de todas as formas de proceder que são próprias dos mortais e de dois em dois dos nossos anos uma dessas formas de ser era escolhida para ser encenada pelas tropas alinhadas em redor do centro da terra para cumprirem a Guerra ordenada pelos deuses. Assim garantiam a invencibilidade dos exércitos dos três castelos em caso de uma improvável invasão de forças externas <…>.
Essa teria sido a última das guerras sagradas se os três exércitos se tivessem defrontado. Aquele a que chamam o Profeta, tendo sido eleito para escolher que tipo de mundos se iriam defrontar, escolheu, pela primeira vez um mesmo mundo para os três castelos. E o mundo escolhido foi o mais estranho que se possa imaginar! Nele todos os homens se deveriam respeitar como iguais, sem distinções de castas, de sexo, de raça, de condição. A nenhum homem deveria ser recusado o acesso a cargos de mando por outras razões para além do seu mérito. E a coragem consistia em não se deixar subjugar em quaisquer circunstâncias. Todos os homens eram senhores de si.
Quando soaram as trombetas dos aleutérios o exército sem nome foi o primeiro a perfilar-se na planície sagrada. Ainda brilhavam as estrelas e uma brisa adocicada veio, roçando as ervas, morder as pernas nuas dos setecentos e setenta zahireus que, como os olhos vítreos, envergavam as armaduras de fogo solidificado. Eram os únicos que cumpriam a tradição.
Ainda a cavalaria do Profeta galopava, num frémito metálico e ribombante, na direcção do centro de onde seria dada a ordem para o início das hostilidades e cada um dos zahireus, depois de beijar a lâmina do punhal da identidade, cortou a sua própria garganta.
<…>.
Quando o sol despontou no horizonte, os três exércitos eram um. As armas foram sendo atiradas para um monte, cada vez maior. Por fim o fogo selou o destino das lâminas que cantaram tantas gestas de sangue e bravura quase divina.

«Se és tu próprio
Não és ninguém,

Se és ninguém,
És a semente,

Se és a semente,
Serás a consumação,

Se fores a consumação
Serás tu próprio.

Refrão:
O punhal não irrompe da vontade,
Do punhal a vontade,
Irrompe sem razão.».

Aquela região, outrora fértil e abundante em animais e gente, hoje é um deserto cuja aridez é demasiado inclemente mesmo para aqueles que, em sonhos, nele se aventuram.”